Como se adquire o vírus da hepatite C (VHC)

José Carlos Ferraz da Fonseca

Médico especialista em Doenças do Fígado (Hepatologia)

De acordo com a Organização Mundial de Saúde, é estimado que 3% da população mundial esteja infectada pelo VHC, ou seja, mais de 170 milhões de pessoas. Na população adulta, em geral, os índices de prevalência variam de região para região e, entre alguns países, de etnia para etnia. No Brasil, estima-se que aproximadamente 2,1 milhões de brasileiros estejam infectados pelo VHC. No Estado do Amazonas, estudos realizados (população geral) revelam que 1,1% desta população é portadora deste vírus, ou seja, aproximadamente 21.171 amazonenses estariam infectados por este agente viral.

Os grupos de maior risco para infecção pelo VHC, antes da introdução da seleção pelos bancos de sangue do teste para o VHC entre 1990-1994, seriam os pacientes hemodializados (pacientes com insuficiência renal utilizando máquina de filtrar o sangue) com ou sem história de transfusão sangüínea, os pacientes politransfundidos com sangue e derivados (leucêmicos, hemofílicos, talassêmicos), receptores de sangue e hemoderivados, receptores de órgãos transplantados e de medula óssea. O principal mecanismo de transmissão do VHC está associado à via parenteral: termo médico utilizado para caracterizar uma via que não a digestiva para administrar medicamentos, drogas ilícitas ou lesões ocasionadas por elementos perfurocortante.

Na transmissão parenteral, o uso de drogas injetáveis (seringas e agulhas não descartáveis usadas em comunidade de drogados) é o principal e o maior fator de risco entre as pessoas infectadas pelo VHC nos Estados Unidos da América do Norte, Ásia e na Europa. Em determinados países do mundo, estudos de prevalência revelam que 45% a 80% dos usuários de drogas injetáveis que compartilham agulhas e seringas estão contaminados com o VHC e, em geral, a infecção pelo VHC ocorre nos primeiros meses de início do uso de tais drogas. Em áreas onde ocorrem altas taxas de infecção pelo VHC como Taiwan (República da China), o uso indiscriminado de injeções parenterais com seringas e agulhas não descartáveis seria a principal causa de sustentação do estado endêmico persistente da infecção pelo VHC dentro de comunidades.

A alta positividade para o VHC entre este grupo de risco estaria relacionada a injeções diárias, em alguns até 10 vezes ao dia, utilizando sempre o mesmo equipamento de aplicação e drogas com alto poder de dependência química, como a cocaína. Um dos meus pacientes se infectou com o VHC de uma maneira muito peculiar e desenvolveu forma aguda de hepatite aguda C dois meses após o acidente. Ao andar descalço no corredor de um grande hotel americano, sentiu uma fisgada no dedo e verificou que sangrava muito. Pensou que era um vidro quebrado. Infelizmente, era uma seringa agulhada com sangue, desprezada por algum drogado no chão do corredor e contaminada pelo VHC. Felizmente, não se contaminou com o vírus da doença AIDS.

Nas décadas de sessenta e setenta, era comum entre jogadores de futebol o uso de injeções endovenosas de vitaminas e substâncias energizantes (vitamina B12, glicose, tiaminose) com seringas e agulhas não descartáveis. Nas referidas décadas, como se sabe, usava-se somente seringas de vidro e as agulhas não eram descartáveis. O processo de esterilização das seringas e das agulhas fazia-se através de fervura, que durava no máximo 10 minutos . Os vírus das hepatites, para serem destruídos, necessitam pelo menos de 30-60 minutos de fervura a uma temperatura média de 120 graus centígrados. Provavelmente, o uso de injeções endovenosas em péssimas condições de assepsia fez que muitos jogadores se contaminassem com o VHC ou vírus da hepatite B (VHB). Hoje, atendo um número significativo de jogadores e alguns apresentam doença hepática crônica em fase avançada (cirrose hepática) pelo VHC e outros realizaram transplante do fígado ou estão na lista para serem transplantados.

Ainda sobre a transmissão parenteral, observa-se com menor freqüência entre os infectados pelo VHC a referência de outros tipos prováveis de exposição ao VHC, tais como:
1.- ritual da troca de sangue que ocorre entre crianças, denominado pela cultura popular como “irmãos de sangue” ou “irmãs de sangue”, ou entre adolescentes apaixonados, denominado de “amor de sangue” ou “unidos pelo sangue”. Tal ritual, disseminado em várias culturas, geralmente dá-se entre pares, cada um perfurando a polpa de um dedo da mão com o mesmo objeto perfurante não esterilizado do tipo canivete, agulha de costura, alfinete, espinho vegetal e até com espinha de peixe, como observado por nós na Amazônia brasileira. Após a perfuração, os indivíduos comprimem o dedo, flui o sangue, tocam-se dedo com dedo, acreditando os pares que ocorreu uma troca de sangue;
2.- escarificações religiosas;
3.- circuncisão;
4.- castração (amputação de clitóris);
5.- história de acidentes com agulhas desprezadas em parques públicos por usuários de drogas injetáveis;
6.- acidentes cirúrgicos ou de punção;
7.- história de acupuntura, tatuagens, piercing em determinadas partes do corpo;
8.- uso coletivo de cocaína intranasal. Como sabemos, indivíduos que aspiram cocaína apresentam constantes ulcerações ou lesões de mucosa nasal e com secreção muitas vezes sanguinolenta. O uso coletivo de instrumentos (canudo) para aspiração entre viciados poderia favorecer a transmissão do VHC.

A transmissão por via parenteral poderia se dar também através do uso compartilhado dos utensílios cortantes contaminados utilizados por portadores do VHC (barbeadores, navalhas, lâminas de depilação, tesouras, alicates de unha e cutícula) por familiares ainda não infectados pelo VHC. Adolescentes podem se contaminar com o VHC ao utilizarem o aparelho de barba do pai já infectado por este vírus. Infelizmente, tenho alguns casos em minha casuística.

A transmissão do VHC pode ocorrer não só do paciente infectado para o profissional de saúde, como também do profissional de saúde infectado para o paciente. Em 1996 foi reportada pela primeira vez a transmissão do VHC por um profissional de saúde (cirurgião cardíaco) a cinco de seus 222 pacientes. Todos os cincos pacientes infectados com o mesmo tipo de VHC do cirurgião sofreram cirurgia cardíaca para reposição de válvula. O mais provável mecanismo de transmissão do VHC entre o cirurgião e seus pacientes seria pela contaminação dos pacientes com o sangue do cirurgião produzido por lesões de seus dedos no ato do fechamento do esterno (osso que separa as costelas direita e esquerda). Um outro relato de transmissão do VHC de um profissional de saúde para um número considerável de pacientes ocorreu em Valência, na Espanha. Tal profissional de saúde, um médico anestesista portador do VHC, durante os procedimentos do ato de analgesia no centro cirúrgico, aparentemente injetava drogas anestésicas nos pacientes com o mesmo equipamento (seringa e agulha) que usava para injetar em si próprio.

Outros mecanismos de transmissão classificados como não parenteral seriam as transmissões sexuais, familiares e durante a vida do bebê no útero da mãe ou durante o trabalho de parto, chamada transmissão vertical (mãe-filho). Além do sangue e seus derivados, o VHC pode ser detectado em secreções e fluidos humanos, tais como: urina, sêmen, secreção vaginal, sangue menstrual, líquido ascítico (líquido seroso contido no abdome), líquido amniótico (líquido contido no útero da mãe envolvendo o feto), leite materno, bile (substância amarelo-esverdeada secretada pelo fígado), lágrima e saliva. Dos diversos tipos de secreções e fluidos de portadores crônicos do VHC, o sangue menstrual (1º. dia do período), o líquido ascítico, a saliva e o sêmen foram os que apresentaram as maiores taxas de positividade para o VHC, 100,0%, 100,0%, 48,0%, 24,0%, respectivamente. Apesar destas altas taxas de infecção, a transmissão sexual, familiar e mãe-filho (vertical) raramente acontecem.

Até o presente momento, não existe qualquer vacina contra o VHC e a melhor maneira de não se contaminar com o VHC é se prevenir seguindo resumidamente estas recomendações: evitar o uso de seringas e agulhas não descartáveis; praticar sexo seguro (uso de camisinha); todos os utensílios (barbeadores, navalhas, lâminas de depilação, tesouras, alicates de unha e cutícula) devem ser de seu uso exclusivo; em parques e praias públicas evite caminhar descalço; acupuntura, tatuagens e piercing só devem ser realizadas com material descartável. Resumindo, se você leitor, ou alguém que faz parte do seu círculo de amizade fizer parte dos chamados grupos de risco (tabela 1) para serem infectados pelo VHC, sugiro que procure seu médico assistente e com certeza ele tomará a conduta correta solicitando um teste no seu sangue para saber se você tem ou não o vírus da hepatite C, desde que você consinta, claro.


Tabela 1.- Quem deve realizar o teste (soro) para os anticorpos contra o VHC (anti-HCV),segundo o risco conhecido? ____________________________________________________________

1. Usuários de drogas médicas ou ilícitas injetáveis, inclusive a aqueles que o fizeram só uma vez em qualquer época da vida.

2. Pessoas que receberam fatores sanguíneos antes de 1992.

3. Indivíduos que receberam transfusão de sangue ou transplantes de órgãos antes de 1992.

4. Pacientes em hemodiálise.

5. Pessoas que apresentem dois resultados de transaminases anormais, ou que apresentem qualquer outra evidência de dano hepático.

6. Profissionais da área da saúde após acidente biológico ou exposição percutânea ou nas mucosas com sangue contaminado.

7. Filhos de mães (anti-HCV positivo) contaminadas.

8. HIV positivos.

9. Indivíduos com múltiplos(as) parceiros(as) sexuais ou histórico de doenças sexualmente transmissíveis.

10. Parceiros sexuais, por longo tempo, de infectados com hepatite C.

11. Usuários de cocaína inalada.

12. Pessoas com tatuagens ou piercings (brincos ou piercings no lóbulo da orelha não é considerado risco).
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Hepatite C e seus aspectos clínicos

José Carlos Ferraz da Fonseca

Médico especialista em Doenças do Fígado (Hepatologia)

Do ponto de vista clínico, como se comportaria um indivíduo que adquire o vírus da hepatite C (VHC)? Do provável contato com o VHC e o aparecimento dos primeiros sinais e sintomas (período de incubação) da doença, este período pode variar de seis a doze semanas. A infecção pelo VHC cursa, na maioria das vezes, sem qualquer tipo de sinais ou sintomas durante um período de tempo, que pode variar entre 10 e 40 anos. Um percentual muito grande de pacientes que desenvolvem hepatite aguda C é assintomático (sem queixas) ou apresenta doença discreta (mínimo de queixas). Na minha experiência, só tive oportunidade de ver oito casos de hepatite aguda pelo VHC.

Quando o quadro agudo de hepatite C se manifesta, os sinais e sintomas são semelhantes aos das outras hepatites. As queixas mais freqüentes dos pacientes são: olhos amarelos (icterícia), fadiga e falta de apetite. Sabe-se que a icterícia pode permanecer por poucos dias ou até vários meses. Quando se examina um paciente, geralmente verifica-se um aumento do fígado e do baço. Um outro dado interessante sobre a hepatite aguda C é que as taxas das aminotransferases (enzimas produzidas no fígado que aumentam quando o mesmo é agredido) são menos evidentes que as taxas verificadas nas hepatites agudas virais A, B, D, E ou medicamentosa.

Um paciente com hepatite aguda C só poderá ser considerado “curado” quando pudermos comprovar a normalidade das aminotransferases por mais de 3 a 4 anos. Devemos lembrar que somente 15% dos indivíduos conseguem eliminar o VHC após a hepatite aguda. O maior problema dos pacientes que desenvolvem hepatite aguda assintomática ou sintomática é que 60 a 90% vão evoluir para a cronicidade, inclusive cirrose hepática e câncer primário de fígado em torno de 20 a 30 anos.

Entre os pacientes que desenvolvem hepatite crônica C, a fadiga constante é o sintoma mais comum e o seu início é insidioso e leve. Outros pacientes se queixam de uma sensação de peso no lado direito do abdome, bem debaixo das costelas. De cada dez pacientes, sete apresentam aumento do fígado e três aumento do baço. Um outro dado interessante sobre a hepatite crônica C é que ela pode cursar, em 30% dos casos, com as aminotransferases normais (sem agressão ao fígado) e mesmo assim o paciente pode desenvolver uma cirrose hepática ou câncer primário de fígado. O diagnóstico de uma hepatite crônica C passaria pela realização de uma biópsia no fígado.

A infecção crônica pelo VHC tem sido associada a manifestações fora do fígado e as principais seriam: vitiligo, diabetes mellitus (mais freqüente no sexo masculino e maiores que 40 anos de idade), coceira (prurido), doenças renais, porfíria cutânea tarda, doenças cancerígenas (linfomas), fibromialgia, crioglobulinemia, doenças da tireóide (mais freqüente no sexo feminino), doenças dermatológicas (líquen plano), depressão (mais comum no sexo feminino), úlcera de córnea, dores nas articulações. Recomenda-se, em todo paciente com sintomas reumáticos de causa desconhecida, a pesquisa do VHC no sangue. Grande parte destas manifestações melhoram quando tratamos os pacientes com as drogas disponíveis no arsenal terapêutico contra o VHC. Todavia, outras exacerbam e se tornam mais graves ou descompensam durante o tratamento, como as doenças da tireóide, diabetes mellitus, líquen plano e psoríases.

Quando os olhos ficam amarelos (icterícia): um sinal de alerta?
José Carlos Ferraz da Fonseca
Médico especialista em Doenças do Fígado (Hepatologia)



Imagem revelando paciente somente com um olho amarelado (icterícia). O outro olho é de vidro.Imagem obtida na internet e copiada da revista "The New England Journal of Medicine 336: 1997".A referida imagem encontra-se disponível desde que seja citada a fonte e seja postada para fins educativos.







Imagem revelando paciente com os olhos amarelados (icterícia).
Foto pertencente ao arquivo do autor
deste blog



O que é icterícia? É a coloração amarela das conjuntivas (membrana mucosa que reveste a parte interna da pálpebra e a parte externa branca do olho), pele e mucosas em razão do aumento das bilirrubinas no sangue. O que é bilirrubina? É um produto final resultante da destruição das células do sangue. A icterícia surge quando as bilirrubinas ultrapassam a cifra de 1,5 mg por 100 ml de sangue.

Como se classificam as icterícias? A icterícia pode ter origem antes do fígado (pré-hepática), dentro do fígado (hepática) e fora do fígado (pós-hepática). Os exemplos clássicos de cada origem seriam: pré-hepática (malária, anemia por destruição das hemácias), hepática (drogas tóxicas ao fígado, hepatite por vírus) e pós-hepática (pedra e tumores na vesícula obstruindo a passagem da bile).

Quais as principais causas de icterícia nas crianças e adultos? Começo pelas causas na infância, principalmente entre os recém-nascidos, que podem ser: prematuridade, leite materno, filhos de mães diabéticas, qualquer tipo de infecção (viral, parasitária, bacteriana), distúrbios metabólicos (hipotireoidismo e outros mais), tóxicos (nutrição parenteral total), drogas (antibióticos, antiinflamatórios), doenças genéticas familiares, anomalias ou obstrução das vias biliares dentro ou fora do fígado (obstrução dos canais de passagem da bile).

De cada mil nascidos vivos, uma média de cinqüenta nascem com os olhos amarelos. Chamamos, inicialmente, este tipo icterícia de fisiológica (imaturidade ou excesso de células sangüíneas), a qual deve desaparecer normalmente em torno de duas semanas. Se os olhos da criança permanecerem amarelos por mais de duas semanas, sugiro que o seu filho, neto, sobrinho ou conhecido seja encaminhado o mais rápido ao pediatra. Sabe o porquê, estimado leitor? Porque a bile retida no fígado é altamente tóxica e quanto mais tempo esta ficar retida neste órgão, maior a probabilidade de evolução para a cirrose hepática. Aí o que acontece? Se não resolvida à causa da icterícia, o fígado do recém-nascido torna-se cirrótico e, com o tempo, somente o transplante hepático resolveria o problema.

As causas mais freqüentes de icterícia em crianças maiores e adultos, são centenas e as mais importantes seriam as de origem infecciosa: hepatites virais, malária, tuberculose, febre tifóide (40% cursam com icterícia), lepstospirose (doença transmitida pela urina do rato), ameba (forma abscesso no fígado e causa hepatite aguda), toxoplasmose (doença transmitida pelas fezes do gato), vírus da imunodeficiência adquirida (HIV), rotavírus, infecções urinárias por bactérias (uma das principais causas de icterícia na mulher, independentemente da idade). As outras causas também importantes seriam: cirrose hepática e biliar, cistos, anemias que causam destruição das hemácias, doenças endócrinas (diabetes, doenças da tireóide), acúmulo de ferro e cobre no fígado, uso de drogas (tetraciclina, eritromicina, antiinflamatórios, contraceptivos, ervas medicinais), obstruções dentro ou fora do fígado por pedras, tumores e lombriga.

O acúmulo de bilirrubinas e de outras substâncias (ácidos biliares) no sangue provocaria alguma alteração em nosso organismo? Sim e o principal é a coceira (prurido). A coceira é o sinal isolado mais importante nos pacientes ictéricos. Ela pode ser localizada (couro cabeludo, axilas, genitais) ou generalizada, contínua ou intermitente e geralmente se inicia pelas palmas da mão e plantas dos pés. Pode ser leve (formas agudas de hepatite) ou pode ser tão intensa (obstruções das vias biliares por pedras ou tumores). A coceira é mais intensa na mulher e exacerba-se durante a noite. Muitos dos pacientes sangram pela pele de tanto coçar e alguns usam até palha de aço, lixa, língua de pirarucu seca, escova de cabelo na tentativa de acalmar a coceira. Em processos de icterícia prolongada, a coceira pode levar ao suicídio. O desespero provocado pela coceira é tão grande que uma paciente minha derramou um litro de álcool em seu corpo e ateou fogo. Foi socorrida a tempo pela família e teve apenas queimaduras de 1º. e 2º. grau. Infelizmente, morreu cinco meses depois em razão de um tumor cancerígeno na vesícula. A icterícia prolongada (crônica) pode provocar o aparecimento de xantoma (nódulo ou placa amarelada localizada na pele, formada por células carregadas de gordura) e osteoporose (perda do tecido ósseo).
Cirrose hepática e suas manifestações clínicas
José Carlos Ferraz da Fonseca


Médico especiali
sta em Doenças do Fígado (Hepatologia)



Paciente (sexo masculino) apresentando sinais
clássicos de cirrose hepática (barriga d'água, mama de mulher, aranhas vasculares)





O que nós podemos dizer ao leitor deste blog sobre as manifestações clínicas da cirrose hepática? Primeiro, seria interessante informar que o fígado na maioria das vezes sofre calado, mesmo cirrótico, apesar de todo o mal que nós temos o prazer ou o vício de fazê-lo trabalhar como nunca.

Clinicamente, os pacientes cirróticos podem apresentar duas fases de doença. A primeira fase da doença é caracterizada pela ausência de qualquer sintoma ou sinal de comprometimento do fígado e pode estender-se por vários anos e até décadas. O paciente cirrótico (estado de cirrose) nesta fase tem uma vida normal, aparentemente é saudável e raramente diagnostica-se esta fase de doença. Como na medicina não existe “nem nunca e nem sempre”, esta fase de doença, mesmo sem qualquer sinal ou sintoma, pode revelar através de uma simples ultra-sonografia abdominal um fígado reduzido de tamanho, que já seria um sinal sugestivo de cirrose hepática. Um fígado diminuído de volume observado na ultra-sonografia não é um diagnóstico concreto de cirrose hepática, pois, à medida que envelhecemos, o tamanho e o peso do fígado diminuem. Aos 60 anos de idade, o fígado reduz-se à metade do tamanho de quando tínhamos menos que 40 anos de idade.

Se você tem menos que 60 anos de idade, é portador dos vírus das hepatites B ou C, tem gordura no fígado com transaminases alteradas, faz uso abusivo das bebidas alcoólicas por mais de 5 a 10 anos, uso drogas que podem lesar o fígado, é diabético, obeso e tem plaquetas baixas observadas em exames hematológicos rotineiros, sugiro que procure seu médico assistente, já que alguma coisa pode estar acontecendo com o seu fígado.

A segunda fase da doença se caracteriza pelo aparecimento dos primeiros sinais claros de doença hepática crônica (cirrose hepática). Inicialmente, alguns pacientes adultos queixam-se de pequenos sangramentos gengivais ao escovar os dentes (gengivorragia), sangramentos espontâneos pelo nariz (epistaxe), manchas na região do tórax semelhantes a aranhas (aranhas vasculares) ou manchas violáceas na pele provocada por pequenos traumatismos ou ocasionadas pelo simples ato de coçar (equimoses). Nas mulheres, o ciclo menstrual altera-se e grande parte deixa de menstruar. Nos homens a clínica inicial da cirrose é mais exuberante e uma significativa partes dos pacientes começam apresentar sinais de feminização caracterizado por: modificação na distribuição dos pelos (ausência de pelos na região suprapúbica) e do tecido gorduroso (acúmulo na cintura e coxas); atrofia dos testículos; crescimento dos peitos (ginecomastia). Nesta fase de doença, a perda da libido e o aparecimento da impotência sexual (disfunção erétil) podem ser um dos primeiros sinais de cirrose hepática. Tais alterações não são uma regra em pacientes cirróticos e pode ser considerada uma exceção.

Um significativo número de pacientes inicia o quadro de cirrose hepática com uma ou com várias complicações que a doença ocasiona, tais como: hemorragia digestiva por ruptura de varizes esofágicas, aumento do volume abdominal em decorrência do acúmulo de líquidos (ascite), olhos amarelos (icterícia), edema dos membros inferiores, sonolência diurna ou desorientação no tempo e no espaço (encefalopatia), infecções repetidas, etc.

Outros sinais que os pacientes com cirrose hepática apresentam, seriam: um hálito insuportável que lembra o cheiro de maçã podre (fedor hepático) e, ao estender a mão, o paciente começa a apresentar tremores que parecem “bater de asas”. Crises de convulsão são freqüentemente observadas entre esses pacientes que, se não tratados rapidamente, tendem a entrar em coma e a morte é inevitável. Com o aparecimento de tais complicações nesta fase avançada da doença, o quadro de cirrose é irreversível e a única solução é o transplante hepático.
Cirrose hepática e suas causas

José Carlos Ferraz da Fonseca

Médico especialista em Doenças do Fígado (Hepatologia)

O que é a doença cirrose hepática? Respondendo tecnicamente e tentado ser o mais objetivo possível, podemos dizer que cirrose hepática é o processo final de reparação do fígado decorrente de uma destruição mantida e contínua aos longos dos anos por um agente, que pode ser infeccioso, medicamentoso, químico (álcool), metabólico ou imunológico (o próprio organismo tentando destruir o fígado), e sem causa aparente (criptogênica). Durante o processo de agressão ao fígado, o mesmo se regenera por substituição de tecido normal por tecido fibroso e sem função orgânica.

Uma outra pergunta é pertinente. Cirrose hepática tem cura? Não, pelo que sabemos até o presente momento. Tal afirmativa é baseada em centenas de estudos científicos publicados e na experiência do próprio autor deste artigo. Pode essa doença ser controlada e compensada? Sim, dependendo do agente que a ocasionou. Morre muita gente de cirrose hepática? Infelizmente sim, tanto em países ricos ou pobres. Anualmente, morrem mais de cinco milhões de pacientes no mundo em conseqüência da cirrose hepática e esta doença é a sétima causa de morte no ocidente e quarta no oriente.

Bem, respondidas as perguntas que consideramos mais importantes para um entendimento prévio do leitor sobre o assunto médico cirrose hepática, passamos agora a escrever como se adquire tal doença.

Os principais agentes causadores (etiologia) da cirrose hepática podem ser agrupados em várias origens:
1.- Infecciosa,principalmente pelos vírus das hepatites B, C e D (delta), sendo o vírus Delta o mais agressivo e mais comum na região Amazônica, especialmente no Estado do Amazonas (calha dos rios Purus, Javari, Juruá e médio Solimões);
2.- Alcoólica, principal agente entre os pacientes adultos, ocorrendo após período médio de 5 a 10 anos de ingestão de quantidade igual ou superior a 80 gramas de álcool por dia (quatro cálices de licor ou uma dose de cachaça e mais duas latas de cerveja);
3.- Induzida por drogas, tais como: isoniazida (usada no tratamento da tuberculose), alfametildopa (tratamento da hipertensão arterial), oxifenisatina (tratamento da prisão de ventre), metotrexato (tratamento de determinadas doenças dermatológicas), ácido valpróico (droga utilizada como anticonvulsivante e tratamento da epilepsia), nitrofurantoína (antibiótico usado no tratamento das infecções urinárias), excessiva ingestão de vitamina A (vitamina utilizada no tratamento da espinha, o mesmo que acne) e finalmente a minociclina (antibiótico utilizado no tratamento da acne). Existem relatos científicos que a minociclina pode ocasionar morte por falência aguda do fígado. Cada uma dessas drogas pode causar cirrose hepática por ação direta ou por mecanismos outros. Pergunte sempre ao seu médico qual ou quais os efeitos colaterais da(s) droga(s) prescritas para você. Ele é a pessoa mais certa para orientá-lo.
4.- Auto-imune, agressão do próprio organismo contra o fígado e é mais comum em crianças, adolescentes e mulheres jovens ou pós-menopausa.
5.- Biliares, geralmente de origem congênita ou adquirida. Crianças ao nascer que permanecem por mais de 30 dias com os olhos amarelos (icterícia), urina escura (colúria) e fezes brancas (acolia) podem desenvolver cirrose em decorrência de problemas durante a gestação ou a presença de cistos no canal de escoamento da bile (colédoco) diagnosticados tardiamente. Pacientes adultos podem desenvolver este tipo de cirrose em decorrência de obstrução das vias biliares por longo tempo, como exemplo pedra na vesícula (lítiase biliar).
6.- Metabólicos, em razão de erros congênitos do metabolismo. Uma doença de origem metabólica que pode causar cirrose hepática é a hemocromatose , do grego haima (sangue) e chromatos (cor), que pode ocorre no período neonatal (acúmulo de ferro no fígado durante a vida intra-uterina).
7.- Criptogênicas, seria uma cirrose hepática de causa indeterminada, que ocorre tanto na infância como no adulto. Sabe-se que 10 a 20% das cirroses são de causa indeterminada, ou seja, nunca saberemos o que levou um paciente a desenvolver um quadro de cirrose hepática.

No Estado do Amazonas, 88% dos pacientes com cirrose hepática estão infectados por um dos vírus da hepatite, principalmente o vírus da hepatite B isolado ou associado ao vírus da hepatite D (delta). Em nosso estado, somente 8% dos pacientes tem como causa de cirrose hepática o alcoolismo, apesar de sermos o estado da federação que tem um dos maiores consumos de cerveja per capita do Brasil.