O álcool e o fígado: o início, o meio e o fim da história.

José Carlos Ferraz da Fonseca.
Médico especialista em Doenças do Fígado (Hepatologia)

Baco: o Deus do vinho (imagem sob domínio público na internet)


O ser humano, desde os primórdios de sua vida, tem uma relação carnal e amorosa com o álcool (etanol), substância química componente de todas as bebidas alcoólicas. Na história bíblica da criação do ser humano, se o fruto do pecado fosse uma uva, o chamado fruto da vida, a história de Adão e Eva poderia ser contada ou recontada de outra maneira. Claro, sabemos que a maçã produz uma pequena quantidade de álcool depois da fermentação, mas não nos percentuais da uva, 8 a 20% de álcool por litro. Suspeita-se que toda a história do binômio homem e álcool tenha começado no período paleolítico (idade da pedra lascada). Foi aí que começou o “pomo da discórdia”.

É sabido que todo alcoolizado sempre tem razão e, o que é pior, depois de se encontrarem sóbrios juram que não lembram de nada. Provavelmente, o início da relação homem e álcool fora de forma acidental. Como isto aconteceu? Nossos antepassados, ao armazenarem o mel de abelhas em recipientes rústicos, perceberiam um processo de fermentação e, ao ingerir o produto fermentado, agora contendo álcool, o humano racional teria provado, gostado e não esquecido jamais. A cerveja, uma das paixões do povo brasileiro, já era fabricada no período neolítico (idade da pedra polida).

Painéis e artefatos arqueológicos revelam que 30 mil anos antes de Cristo o ser humano já fazia da ingestão do álcool o seu cotidiano prazeroso. Diversas obras artísticas e literárias, inclusive algumas e famosas tragédias gregas, faziam referências aos efeitos até então benéficos das bebidas alcoólicas. No antigo mundo egípcio, romano e grego, falsos profetas e profetisas ou sacerdotes e sacerdotisas, após bebericar altas doses de álcool nos templos das orações, comunicavam-se com os Deuses e a partir daí os destinos dos reis, imperadores, senadores e dos povos em geral eram traçados sobre o efeito das alucinações promovidas pelo álcool.

Cientificamente, sabemos que a ingestão de altas doses do álcool teria uma ação alucinógena. Há mais de 30 anos, no começo de minha vida profissional, tinha um paciente com mais de 65 anos e alcoólatra. No dia da consulta, bem cedo, já chegava totalmente embriagado e ao entrar no meu consultório ele tinha o prazer de dizer: “Bom dia Dr. Getúlio Vargas, cadê o Gregório?” Infelizmente, logo o álcool levou-o ao encontro de seu ídolo maior.

Dos grandes profetas, Maomé foi o mais enfático na proibição do álcool aos seus seguidores. Os muçulmanos vêem no álcool uma falta gravíssima desde que o profeta Maomé recebeu uma mensagem de Alá dizendo que bebidas alcoólicas eram "obra de Satã”. Tal proibição, mesmo de cunho religioso, reflete-se na área médica. Cientificamente, sabe-se que uma grande parte dos povos da península árabe seria incapaz de produzir no fígado uma determinada enzima, e tal problema genético resultaria em uma ação dez vezes mais agressiva do álcool ao fígado. Por tal deficiência, ocorreria uma evolução desfavorável para um quadro de cirrose hepática alcoólica em menos de 08 anos. Esta proibição e o “efeito-causa” deveriam servir como exemplo para o bom relacionamento da religião com a medicina.

Em 1543 o abuso da ingestão de bebidas alcoólicas foi associado com as enfermidades do fígado (Vesalius, Matthew Baillie). No ano de 1590, a presença de água na barriga dos pacientes (ascite), também chamada popularmente de hidropisia, foi relacionada pela primeira vez à cirrose hepática, principalmente entre alcoólatras.

No século XVII o estado de confusão mental e coma hepático (sinais de falência hepática) foram também correlacionados à cirrose hepática alcoólica. Na segunda metade do século XIX, precisamente na França, o alcoolismo começa a ser conceituado como doença, e não apenas vício. Em tal país, e em pleno século XIX, bebia-se muito. Cada vez mais aumentava o número de tabernas por habitantes e nas ruas parisienses era freqüente o número de pessoas alcoolizadas. Qualquer coincidência com o Brasil de hoje é pura especulação do autor.

Se o leitor deste artigo, ou alguém bem próximo, beber diariamente 80 gramas de álcool (uma dose de cachaça ou vodca e mais duas latas de cerveja), por mais de 5 a 12 anos, provavelmente, terá grandes possibilidades, desde que seja susceptível, de desenvolver uma cirrose hepática alcoólica.

O alcoolismo é considerado como uma das principais causas de cirrose hepática (fígado endurecido como pedra) no mundo. Todavia, apenas 8 a 10% dos alcoólatras a desenvolvem. Em muitos alcoólatras, contudo, a cirrose hepática nunca ocorre, mesmo após décadas de ingestão de álcool excessiva. Não existe uma explicação coerente e científica para esta aparente resistência à doença. No Brasil, o maior coeficiente de morte específica por cirrose hepática alcoólica concentra-se nas regiões Sul e Sudeste, regiões conhecidas pelo alto consumo de álcool, principalmente o vinho. A mortalidade por cirrose hepática alcoólica no homem é maior do que na mulher e tal fato deve-se ao maior consumo de álcool entre aqueles, apesar de que as mulheres são mais suscetíveis a desenvolverem cirrose hepática alcoólica do que o homem.

O álcool em pequenas quantidades é estimulante do apetite, tranqüilizante e sedativo, libera o bebedor de suas inibições e restrições de conduta social, estimula a habilidade e o talento. Entretanto, a ingestão de álcool de maneira crônica e excessiva produz diversas doenças físicas e mentais. Entre os órgãos que mais sofrem com o uso abusivo do consumo alcoólico está o fígado. Isto é patente e notório, não se discute. O álcool produz uma substância denominada de acetaldeído, que é muito tóxica ao fígado, provocando danos hepáticos gravíssimos e na maioria das vezes irreversíveis. Fatores genéticos, imunológicos e ambientais independentes podem determinar o desenvolvimento de doença hepática alcoólica. Contudo, o dano hepático causado pelo álcool está estritamente relacionado à quantidade, freqüência e duração do tempo de consumo de álcool. A ingestão diária por um período longo de mais de 80 gramas de álcool (uma dose de cachaça ou vodca e mais duas latas de cerveja) constitui-se um alto de risco de doença hepática.

O que acontece com o fígado daqueles que exageram no consumo contínuo do álcool? A história clínica passa por quatro fases distintas. A primeira fase caracteriza-se pela presença de deposição de gordura no fígado (esteatose hepática); a segunda, pela fase de inflamação aguda do fígado (hepatite aguda alcoólica); a terceira, pela fibrose do fígado (formação de tecido fibroso); e, finalmente, a quarta, que é a fase de cirrose alcoólica (fígado endurecido). Com pouca freqüência, alguns pacientes poderiam desenvolver processo tumoral maligno de fígado (câncer de fígado), mas uma grande parte destes morrem antes de complicações da cirrose, como hemorragia digestiva, infecções generalizadas e falência hepática.

A fase de deposição de gordura no fígado (esteatose hepática) raramente apresenta algum sinal ou sintoma de doença. Alguns pacientes queixam-se apenas de uma dor em peso ou cansada debaixo da última costela direita e o fígado torna-se grande e palpável em alguns pacientes. Observa-se na ultra-sonografia uma infiltração de gordura no fígado. A função bioquímica do fígado está normal, ou seja, os níveis bioquímicos das aminotransferases (transaminases) encontram-se normais. A esteatose hepática é a primeira lesão a ocorrer após a ingestão alcoólica e pode aparecer precocemente no fígado após o consumo de grandes quantidades de álcool.

A segunda fase da doença (hepatite aguda alcoólica) tem sintomas e sinais clínicos idênticos aos de uma hepatite aguda causada por um vírus. O paciente queixa-se de cansaço fácil, vômitos e náuseas (enjôos), falta de apetite, os olhos ficam amarelos e a urina cor de guaraná regional. O fígado pode crescer e os exames de laboratórios revelam o aumento das aminotransferases (transaminases). Por estar doente ou com medo, o paciente perde a vontade ou pára de beber, geralmente fica curado. Porém, se o paciente continuar bebendo, poderá evoluir para as fases mais graves da doença alcoólica, que são a da substituição das células normais do fígado por tecido fibroso (sem função no fígado) e finalmente cirrose hepática. Na fase de fibrose do fígado não há sintomas específicos, geralmente é assintomática. Por outro lado, 8 a 10 anos após a primeira fase clínica da doença (esteatose hepática), o alcoólatra começa a apresentar sinais e sintomas crônicos da doença (fase de cirrose).

Classicamente esta fase final de doença caracteriza-se por: febre discreta; olhos amarelos, lesões na pele semelhantes a aranhas; perda de peso; diminuição e flacidez da massa muscular; sangramentos (gengivas, nariz, pele, estômago); perda da libido (perda no interesse em manter relações sexuais); queda de pêlos; aumento doloroso dos peitos masculinos; ausência de menstruação, esterilidade e seios inchados extremamente dolorosos na mulher. A barriga começa a acumular líquido (ascite) e as pernas apresentam-se inchadas. Nesta fase, o alcoólatra pode apresentar sonolência, euforia, agitação e depois entrar em coma por falência do fígado (inércia física e intelectual). Frequentemente, este quadro de coma quando tratado é reversível, mas a doença não. O que fazer? Daí por diante, a esperança de uma vida digna estaria baseada no transplante hepático.

5 comentários:

Anônimo disse...

A verdadeira ciência se faz assim. Parabéns Dr.José Carlos Fonseca. O senhor é um sábio...

Anônimo disse...

Estou feliz por ter encontrado esse blog,realmente é muito importante para nós. Mas de verdade? estou com medo.Preciso parar com a bebida, preciso muito. Vou tentar ser forte para viver um pouco mais.

Anônimo disse...

Dr. José Carlos, é muito legal que nós profissionais da área da saúde compartilhemos nossos conhecimentos para informação do público em geral, porém quando o sr. fala da Bíblia e sua história, fala com pouco conhecimento da Palavra de Deus e acaba influênciando de maneira errada algum leitor. O Fruto do CONHECIMENTO, da história de Adão e Eva, não era nem uva, nem maça...mesmo pq se formos estudar a Bíblia, verá que não há citação do nome da fruta...é tudo simbólico, e o fruto descrito possui água dentro, pois Eva bebeu e comeu desse fruto (livro dos Gênesis!) Além disso o sr. postou uma foto de um deus...tal da bebida...mesmo sem conhecimento bíblico, mas como médico o sr. não deveria achar estranho um deus que incentiva a bebedeira?? Afinal beber não traz sérios danos à saúde? Pesquise mais para escrever com mais embasamento para assim influênciar pessoas de maneira positiva! A Bíblia é um manual de vida!Se converta, conheça Jesus Cristo, seu salvador!ELE te ama!!Deus abençõe ao sr e a todos os leitores

josegondim disse...

Em dezembro de 2011, quando foi diagnosticado que eu tinha cirrose (agradeço demais pelo médico Dr. Antônio Nilton da Cruz)parei de beber imediatamente e até hoje sinto que existe uma melhora grande no meu estado. Tanto que hoje só tomo o controle da vitamina K uma vez por semana. Quando descobri o Blog fazendo pesquisas na net, segui radicalmente o que está escrito, informei para o meu médico e houve uma melhora de quase 80% no meu quadro geral. Gostaria de saber como adquiro os livros sobre o assunto pois quero passar pra tantas outras pessoas antes que elas passem por esses desesperos, que pelo menos eu passei, pois estou com 52 anos e na melhor fase da minha vida em todos os sentidos: com Deus, minha esposa, filhos, comércio, família, amigos, etc.
E deixar um grande abraço pra o Sr. que é bem claro e com palavras suaves. Que Deus o abençoe e o ilumine sempre!!!
josegondin@hotmail.com
José Gondim Lóssio Neto
Juazeiro do Norte - Ceará

Anônimo disse...

Dr. parabéns pela linguagem simples e direta, nós que estamos com alguma suspeita de doença, pesquisamos várias coisas na net e quase ficamos doidos, mas suas palavras de profissional respeitado nos dar uma luz.
parabéns.