O fígado nos pacientes com AIDS

José Carlos Ferraz da Fonseca

Médico especialista em Doenças do Fígado (Hepatologia)


Um número considerável de agentes infecciosos pode comprometer o fígado, principalmente entre indivíduos infectados pelo vírus da imunodeficiência adquirida (HIV) e com AIDS (doença estabelecida). Como sabemos, o HIV é um retrovírus que ocasiona aos seus portadores um estado de defesa muito baixo (defeito da imunidade celular) contra centenas de agentes infecciosos. As doenças que geralmente são benignas entre pacientes com um bom estado de defesa (excelente imunidade celular) tornam-se gravíssimas aos pacientes com AIDS, como a toxoplasmose, tuberculose, sarampo, hepatites virais, etc.

O fígado, em tese, não é um órgão pelo que o HIV tenha alguma predileção, como ele tem por outros órgãos e células. Contudo, na fase inicial de infecção pelo HIV, as células do fígado (hepatócitos) são infectadas por este vírus e tornam-se reservatórias do vírus, perpertuando e disseminando, assim, a infecção pelo HIV. Sabemos que a presença do HIV no fígado provoca efeitos mínimos, mas, quando o estado de defesa cai, infecções oportunistas e doenças cancerígenas provocam os mais diversos sinais e sintomas de agressão ao fígado. O comprometimento do fígado entre pacientes com AIDS pode ocorrer em decorrência de infecções oportunistas, doenças cancerígenas, induzidas por fármacos utilizados no tratamento da infecção pelo HIV (anti-retrovirais).

Entre as infecções por agentes oportunistas que invadem e lesam o fígado, as mais freqüentes seriam: bacilos da tuberculose (mycobaccterium tuberculosis, mycobacterium avium intracellulare), fungos (criptococcus neoformas, histoplasma capsulatum) e vírus (citomegalovírus). Nos pacientes com AIDS que desenvolvem infecção oportunista pelos bacilos da tuberculose, a doença expressa-se comprometendo o fígado e ocasionando dor abdominal, enjôos, vômitos, febre, suores noturnos intensos, diarréia crônica, os olhos e pele ficam amarelos, a urina tem coloração escura (cor de guaraná regional), o fígado cresce. A biópsia hepática torna-se necessária para confirmar o diagnóstico. O tratamento com drogas antituberculose deve ser indicado com a maior urgência.

Revisando a literatura médica, observei que existem poucos relatos de comprometimento do fígado por fungos, mas sabemos que isto pode ocorrer quando a infecção torna-se generalizada. Se a infecção tomar este rumo, o quadro clínico pelo comprometimento do fígado revelaria: febre, crescimento do fígado provocando dor no lado direito e superior do abdome, geralmente abaixo das costelas correspondentes. O que mais chama atenção é o aparecimento da icterícia (olhos e pele de coloração amarelada); daí a suspeita do comprometimento do fígado.

Entre pacientes infectados pelo HIV e com AIDS, o citomegalovírus é incriminado como um dos principais agentes infecciosos oportunistas capaz de provocar hepatite aguda e uma doença de nome esquisito, chamada colangiopatia associada a AIDS. O quadro clínico é muito discreto, caracterizado por febre moderada, icterícia discreta (olhos amarelos), mal-estar, perda de peso, aumento do fígado e do baço.

Doenças cancerígenas como o sarcoma de Kaposi e o linfoma não-Hodkgin (tipo de tumor cancerígeno) relacionadas à AIDS podem comprometer também o fígado, além de outros órgãos. No sarcoma de Kaposi, observamos um aumento considerável do fígado e baço. Em decorrência do aumento desses órgãos, alguns pacientes queixam-se de muita dor abdominal. Por outro lado, portadores do linfoma não-Hodkgin apresentam quadro clínico mais exacerbado e caracterizado por: febre alta, emagrecimento (perda progressiva de peso), olhos amarelos, fígado aumentado de volume e dor no abdome superior (boca do estomago).

A terapia anti-retroviral altamente ativa modificou totalmente o curso da doença pelo HIV, com uma drástica diminuição da morbidade (causas de doença) e mortalidade derivada de infecções oportunistas por bactérias, vírus, fungos e outros mais agentes infecciosos. Em contrapartida, o uso destas drogas anti-retrovirais acarretaram efeitos secundários gravíssimos, entre os quais podemos incluir a toxidade hepática. Merece especial atenção este efeito secundário (toxidade hepática), porque é a principal causa de morbidade e mortalidade entre pacientes coinfectados pelos vírus da hepatite B(VHB) ou pelo vírus da hepatite C (VHC). Os efeitos dessas drogas no fígado com freqüência motiva a suspensão do tratamento contra a AIDS. Aproximadamente 33% dos pacientes infectados pelo HIV se encontram infectados também pelo VHC, prevalência que aumenta 60-90% quando a infecção foi adquirida pelo uso de drogas ilícitas injetadas no músculo ou veia. Em alguns pacientes, a infecção pelo HIV acelera o curso clínico da doença ocasionada pelo VHC e a evolução para cirrose hepática é muita rápida, menos que 10 anos.

Com o advento das novas drogas anti-retrovirais, observamos freqüentemente o aumento de casos de insuficiência hepática fulminante (hepatite fulminante). Entre pacientes com AIDS e com doença hepática crônica (cirrose hepática) pré-existente, o uso dessas drogas ocasiona morte por falência do fígado. Várias drogas são utilizadas no tratamento do HIV ou como terapêutica e profilaxia das infecções oportunistas. Entre as drogas anti-retrovirais usadas, duas delas são potencialmente tóxicas ao fígado: a zidovudina e a didanosina. As duas provocam quadro grave de hepatite aguda e o paciente pode morrer de hepatite fulminante. Drogas utilizadas no tratamento das infecções oportunistas, como rifampicina, sulafametaxazol-trimetropim, isoniazida, pirazinamida, ketoconazole, fluconazole e pentamidina, também podem provocar quadro de hepatite aguda.

Termino este artigo com um pensamento de Moliére, esperando que o próprio leitor tire as suas devidas conclusões: “Quase todos os homens morrem dos seus remédios, não das suas doenças”.

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