Vírus da hepatite D (Delta)

José Carlos Ferraz da Fonseca

Especialista em Doenças do Fígado (Hepatologia)



Nesta imagem, observa-se partículas do vírus da hepatite Delta (setas vermelhas) obtidas por microscopia eletrônica. Foto gentilmente cedida pelo Dr. Mario Rizzetto (descobridor do VHD).





Dentre os vírus que acometem o fígado, o da hepatite D (VHD) ou vírus Delta é o mais agressivo, sendo capaz de matar uma pessoa em 48 horas. Descoberto em 1977, por Mario Rizzetto (pesquisador de origem italiana), o VHD é endêmico em várias regiões do mundo.

Acredita-se que existam 15 milhões de pessoas infectadas por este agente ao redor dos cinco continentes. A região amazônica brasileira é uma das regiões mais endêmicas de infecção pelo VHD, no mundo. As áreas onde ocorrem os maiores números de casos de hepatite Delta são: rio Purus, rio Juruá, rio Javari e rio Solimões (médio Solimões). Nessas áreas, o vírus Delta é responsável por grande parte dos casos da doença denominada Febre Negra de Lábrea (leia neste blog, capítulo sobre a referida doença).

O vírus Delta apresenta características biológicas que o diferenciam dos outros vírus que agridem o fígado. É o único vírus humano que só infecta um indivíduo se este for portador do vírus da hepatite B (VHB), ou seja, o VHD precisa do VHB para se multiplicar e viver. Portanto, sem o VHB no sangue e fígado do paciente, o vírus Delta é incapaz de infectar alguém.

Existem dois modos de o paciente adquirir o referido agente viral. O primeiro seria da seguinte maneira: o indivíduo é portador do VHB (HBsAg positivo) e se contamina com sangue ou secreções de pessoas infectadas pelo VHB+VHD. O segundo modo é mais simples de entender, podendo-se citar o seguinte exemplo: militar solteiro vai trabalhar em local endêmico de hepatite B e Delta, não é vacinado contra o VHB e nunca foi infectado pelo VHB, apaixona-se por uma garota residente, portadora do VHB+VHD, então, mantêm relação sexual e, dessa forma, pode o militar adquirir ambos os vírus.

Todos os portadores do VHB, com doença ou sem doença, devem evitar visitar áreas endêmicas de infecção pelo vírus Delta. Frequentemente oriento aos funcionários públicos (militares, magistrados, médicos) não-vacinados contra o VHB que se vacinem (três doses, dose mensal). Se possível, vacinar-se três meses antes de prestarem serviços nas comunidades. Se vacinados e devidamente imunes (protegidos) contra infecção pelo VHB, o risco de se contaminar com o vírus Delta é zero.

Sempre conto a história de um médico boliviano, sabidamente portador inativo do VHB, que foi trabalhar no rio Juruá. Após cinco meses na localidade, desenvolveu quadro de hepatite aguda grave, diagnosticada como superinfecção aguda pelo vírus Delta, no início da década de noventa. Infelizmente, após quatro anos do quadro agudo, o paciente médico desenvolveu quadro de cirrose hepática. Voltou para La Paz (Bolivia) e, até hoje, não sei o que aconteceu. Espero que não, mas, provavelmente, deve ter morrido. Naquela época, o transplante hepático ainda estava engatinhando no Brasil e na América Latina.

As principais formas de transmissão do vírus Delta são:
1- via parenteral direta ou indireta (injeções ilícitas por uso de drogas, material cirúrgico não esterilizado, transfusão de sangue e derivados, tatuagens, uso compartilhado dos utensílios cortantes contaminados utilizados por portadores do VHB e VHD, como barbeadores, navalhas, lâminas de depilação, tesouras, alicates de unha e cutícula);
2 - via sexual (heterossexuais promíscuos e homens que fazem sexo com homem); e
3 - via vertical (mães infectadas pelo VHB e VHD que contaminam os recém-nascidos durante o trabalho de parto).

As outras maneiras de contaminar-se com o vírus Delta são: evitar contato com qualquer tipo de secreção contendo o VHB e VHD, em fase de alta replicação (esperma, sangue menstrual).

O vírus Delta pode causar doença hepática aguda ou fulminante, hepatite crônica e cirrose hepática. Geralmente, pacientes que desenvolvem hepatite aguda ou fulminante pelo VHD morrem, ou evoluem para as formas crônicas de hepatite, inclusive cirrose hepática, em menos de quatro anos.

Durante minhas pesquisas sobre o VHD na região amazônica brasileira, ouvi relatos e presenciei inúmeros casos de hepatite Delta fulminante (febre Negra de Lábrea) e tudo acontecia assim: a “doença” começava abruptamente, o paciente tinha falta de paciência, tristeza e permanecia o tempo todo calado; em torno de 24 horas, o paciente agitava-se, falando palavras desconexas e de baixo calão, quebrando tudo ao seu redor, mordendo as pessoas, chegando a “vomitar o fígado”; após tal quadro, o paciente entrava em coma profundo e, geralmente, após 48 horas a 72 horas do início da doença, morria. Talvez o relato mais interessante seja que, após a morte, o “defunto continuava quente por mais de seis horas e sangrando pelo nariz” (leia neste livro, capítulo sobre Febre Negra de Lábrea).

Com relação aos aspectos clínicos e laboratoriais da hepatite crônica D em nossa região (Estado do Amazonas), foram observadas determinadas peculiaridades que a fazem diferenciar das hepatites crônicas ocasionadas pelos VHB e VHC. Clinicamente, verifica-se uma doença crônica mais exacerbada, evoluindo geralmente com períodos de febre, icterícia acentuada, sangramento nasal (epistaxe), astenia, mialgia (dor muscular), artralgia e perda da libido. Em alguns pacientes, identificam-se o aparecimento precoce de estigmas de hepatopatia crônica (aranhas vasculares, eritema palmar) e ginecomastia (desenvolvimento excessivo da glândula mamária) nos pacientes do sexo masculino. Nas pacientes do sexo feminino, é frequente a queixa de falta de menstruação (amenorréia), inclusive por tempo prolongado de até, em média, dois anos. Uma grande parte dos pacientes apresenta altíssima frequência (80%) de baço aumentado (esplenomegalia), quando comparados com os índices de 32% nos pacientes com hepatite crônica B e de apenas 18% nos pacientes com hepatite crônica C. Dos achados laboratoriais, verifica-se que a maioria dos enfermos cursa com albumina sérica (proteína produzida pelo fígado) baixa e aminotransferases sempre altas e constantes. A albumina baixa no organismo provoca inchaço (edema) e barriga d’água (ascite). Valores baixíssimos de leucócitos (células brancas), plaquetas, e do tempo e atividade de protrombina (TAP) são achados notórios em um grande número de pacientes.

O tratamento com Interferon (droga indicada), nas formas crônicas de hepatite Delta, sempre resulta em fracasso. Durante minha vida profissional, já tratei muitos pacientes e apenas um paciente negativou o VHB e o VHD, após 11 anos de terapia com Interferon. Há cinco anos permanece negativo, e recente biópsia hepática revela fígado sem atividade inflamatória e com discretas traves de fibrose (aumento das fibras no tecido hepático).

O transplante hepático é indicado em pacientes com cirrose hepática descompensada pelo VHD. Vários de meus pacientes já foram transplantados, e a maioria encontra-se muito bem!