O dia-a-dia dos pacientes com cirrose hepática

José Carlos Ferraz da Fonseca

Médico especialista em Doenças do Fígado (Hepatologia)

Dando continuidade aos artigos publicados neste blog sobre cirrose hepática, podemos dizer que, se o paciente cirrótico encontrar-se em fase bem avançada da doença e, mesmo assim, tiver o prazer de comer e de ingerir exageradamente alimentos constituídos de proteína animal (carne vermelha, ovo, manteiga, queijo amarelo, leite animal), existe a possibilidade do mesmo entrar em estado de confusão mental.

Elementos que fazem parte das proteínas animais, quando ingeridos e degradados no intestino, produzem uma substância chamada amônia, substância esta que vai impregnar o cérebro e é responsável pela estado de confusão. Este estado é conhecido no meio médico como encefalopatia hepática. O quadro tende a iniciar-se com a presença de sonolência diurna e insônia noturna, mudança de comportamento e conduta inadequada, alterações na escrita que impossibilita assinar-se o próprio nome.

A maioria dos pacientes perde a noção de espaço (não sabem onde estão e são capazes de urinar nas cestas de lixo, pia ou no guarda-roupa) e fica totalmente desorientada no tempo (esquecem tudo o que se relaciona com dia, semana, ano, números, etc.). Alguns pacientes perdem totalmente a memória e são incapazes de lembrarem seu nome. Pacientes pacíficos se convertem em indivíduos eufóricos, irritadíssimos, inquietos, apresentam conduta infantil e a agressividade fica muito patente nestes pacientes (alguns são erroneamente internados em clínicas psiquiátricas). Outros, pelo contrário, tornam-se muito passivos e são incapazes de reagir a qualquer estímulo, seja verbal ou físico. É comum que familiares telefonem e digam: “Doutor, o papai está de novo com aquela bobeira ”.

Sempre indicamos aos pacientes com cirrose hepática dieta baseada em proteínas vegetais e damos ênfase a produtos essencialmente brasileiros e amazônicos tais como: castanha regional, tucumã, pupunha, abricó, abacate, manga, ingá e outros mais. Por outro lado, é injustificável a restrição total de gorduras na dieta do cirrótico. O tabu de que as gorduras aumentam o trabalho do fígado e, assim, o seu desgaste funcional carece totalmente de fundamento científico. Sabe-se de antemão que 75% dos pacientes cirróticos são desnutridos em decorrência da própria doença (são anoréticos) e em conseqüência das inúmeras restrições dietéticas impostas por leigos, familiares, compadres e vizinhos. È sempre aquela mesma história não pode comer isso ou aquilo, pois tudo faz mal. A gordura sem excesso é uma fonte energética do organismo. Nesses pacientes indico como fonte energética vegetal (constituída de gordura monosaturada e não faz mal) os seguintes produtos: leite da castanha regional ou do Pará, tucumã, pupunha e leite de coco. Por outro lado, contra-indicamos qualquer tipo de gordura animal (bacon, pele de galinha ou de pato, gordura da picanha, carne seca). Peixe gordo pode comer, não faz mal, menos frito, certo?

Depois da carne vermelha e de gordura animal, o ato de proibir o consumo exagerado de sal aos pacientes cirróticos é um dos maiores problemas que o médico encontra na clinica diária. Do “ponto de vista” não-médico, qualquer comida sem sal, principalmente o peixe (sempre indicado ao paciente com cirrose), é intragável, sem gosto, apesar de sabermos o mal que o consumo exagerado do sal faz, principalmente para os que têm o fígado sadio e mais de quarenta anos de idade. É bom lembrar ao prezado leitor que a maioria dos índios ao se “socializar” ou como chamo, “salsocializar”, tornam-se hipertensos por comerem sal. O consumo de mais de três gramas (duas pitadas generosas) de sal por dia pode representar ao cirrótico em fase avançada da doença o que se segue: aumento do inchaço (edema) nas pernas (principalmente nos tornozelos), a barriga cresce e fica cheia de liquido (ascite) e os pulmões podem ficar comprometidos pela presença de líquidos (derrame pleural).

A piora do quadro clinico de um paciente com cirrose pode ser provocada por uma dieta errada ou por infecções bacterianas, fato muito comum observado entre esses pacientes. Um número significativo de pacientes cirróticos desenvolve a popular “vermelha” (erisipela) nos membros inferiores ocasionado por infecções bacterianas em decorrência da má circulação venosa, que é provocada pelo mau funcionamento do fígado. É mais um dos cuidados que os familiares dos pacientes com cirrose têm que ter. Qualquer sinal de “vermelha” nas pernas do seu familiar, leve-o ao médico imediatamente, pois aquele pode desenvolver confusão mental e entrar em coma. Levar o paciente para a rezadeira não vai adiantar, as bactérias são agnósticas e o que cura mesmo é o antibiótico prescrito pelo médico.

Se você, caro leitor, tem na família ou conhece alguém, por exemplo, com cirrose hepática, mantenha-se vigilante na dieta prescrita pelo médico e fique atento para detectar os sinais e sintomas. O diagnóstico precoce no ambiente familiar pode ajudar, e muito, o seu familiar, conhecido ou amigo. Por outro lado, caro leitor, se você tiver cirrose hepática já diagnosticada, siga corretamente o que o seu médico recomenda, pois alguém poderá contar sua história quando você entrar em crise.