Natal e Réveillon: muito cuidado com o seu fígado

José Carlos Ferraz da Fonseca 
Médico especialista em Doenças do Fígado (Hepatologia).






Na “Santa ceia”, Jesus Cristo ofereceu aos seus apóstolos somente “pão e vinho”. Uma ceia muito espartana, tenho que concordar. Mas é claro que nas festas do ano novo a maioria dos leitores não repetirá a dieta à base de pão que Jesus e os apóstolos fizeram naquele momento de significado tão religioso. O pão será somente um complemento e quem gosta do líquido santo e precioso só beberá vinho. Tive um paciente com cirrose hepática alcoólica que gostava de dizer que só gostava de beber vinho tinto. Afirmava com toda convicção que tal bebida não fazia mal porque era igual ao sangue de Cristo: encarnado (vermelho), puro e milagroso. Escrevendo como médico e não filosofando, é difícil entender certas projeções dos viciados no álcool. 

Lembro de uma das novelas de Dias Gomes (dramaturgo brasileiro), em que uma das personagens chamava-se Dona Redonda. Alguém lembra? Pois é, ela explodiu de tanto comer, não sei se foi na passagem de ano, mas que ela explodiu, explodiu. Nas consultas médicas de dezembro, é comum que os meus pacientes no final tenham sempre uma pergunta arquitetada durante o dia e na ponta da língua: “Doutor José Carlos, posso comer e beber no Réveillon?” Com certeza, eles sabem o que faz mal, pois tenho como norma clínica explicar aos meus pacientes o que é bom e o que é ruim para a sua saúde. Fico na berlinda se respondo se pode ou não, pois adoro os quitutes da passagem de ano, menos qualquer coisa que contenha álcool. Infelizmente, as palavras “pena” ou “coitadinho” não existem no dicionário da minha especialidade. A qualidade de vida dos pacientes com qualquer doença do fígado depende muito mais dos próprios pacientes do que do médico que o assiste.

O que realmente faz mal para o fígado? Muito pouca coisa, se você não tem nenhuma doença hepática ou predisposição a tê-la. Todavia, se você tiver alguma doença no fígado ou predisposição e encontra-se em fase de tratamento, quase tudo faz mal, até um doce suspiro comido na hora errada. 

Começamos pelo excesso de bebidas alcoólicas. O dano ao fígado causado pelo álcool está estritamente relacionado à quantidade, freqüência e duração do tempo de consumo de álcool.  Se o leitor deste artigo, ou alguém bem próximo, beber diariamente 60-80 gramas de álcool (duas doses de cachaça ou uma de conhaque e mais duas latas de cerveja), por mais de 5 a 12 anos, provavelmente, terá grandes possibilidades, desde que seja suscetível, de desenvolver uma cirrose hepática alcoólica. Contudo, em muitos alcoólatras, a cirrose hepática nunca ocorre, mesmo após décadas de ingestão de álcool excessiva. Pronto: se você não tem nenhuma doença hepática, beba moderadamente no Réveillon e nada acontecerá ao seu fígado. Um outro aviso: cuidado, o álcool não faz mal só para o fígado. A ingestão abusiva pode fazer com que o machão extravase em público o seu lado feminino. Há mais problemas: tanto o homem como a mulher podem sofrer de estômago (gastrite, úlcera), de perda da potência sexual (homem) e da libido (homem, mulher), do pâncreas, do coração e dos nervos. Muito acabam perdendo o juízo, ocasionando os mais graves delitos, seja no trânsito ou em sua própria casa. Os crimes passionais são na maioria das vezes ocasionados pelo consumo exagerado de álcool.

Com relação aos quitutes do Réveillon, o que realmente faria mal para uma pessoa com o fígado sabidamente sadio? Sabemos que todos os sintomas apresentados pelo paciente após tal ceia  estariam relacionados com o estômago, vesícula biliar e o intestino, e não com o fígado. Neste caso, o fígado do “rei  ou rainha da gordura e do álcool” teria que trabalhar dez vezes mais para processar e eliminar os elementos nocivos contidos na ceia do Réveillon (gorduras, toxinas químicas, sal), nos petiscos (gorduras, substâncias cancerígenas, conservantes, toxinas químicas, sal) e bebida alcoólica (etanol). Em decorrência da alta concentração de colesterol nos petiscos e ceia, o fígado usaria esta superoferta de colesterol para produzir excessivamente uma substância chamada bile ou bílis (substância amarelo-esverdeada secretada pelo fígado), que seria eliminada para o duodeno (primeira porção intestino delgado) e intestino (mistura-se com os alimentos para ajudar na digestão). Parte da bile seria absorvida pelo estômago e daí provocaria boca amarga e com gosto de água de lavar espingarda ou de fel. Quem ainda não foi personagem desta história, que atire a primeira colherada de maionese.

Se você tem pedra na vesícula, aí a história é diferente. Depois dos comes e bebes do Réveillon, lá pelo fim da madrugada começa a sessão de gases incontroláveis e inconvenientes, boca amarga, cólica, o teto roda, existe uma sensação de que a barriga vai explodir (distensão abdominal), o guloso ou gulosa chama os filhos para se despedir e diz que desta não escapa. No dia seguinte, logo pela manhã o paciente refere intolerância a alimentos e diz com toda moral possível que nunca mais vai repetir o que fez ontem. Geralmente o almoço do dia primeiro é o que sobrou da véspera. E aí? Conheço muita gente que adora pegar os restos do peru ou porco (ossos do barão) que sobrou do jantar da véspera, colocar jambu, tucupi e oferecer no almoço o novo prato: “peru ou porco no tucupi”. Existem pessoas que afirmam que é um verdadeiro manjar dos deuses, ainda não ousei provar.  O tucupi é um dos produtos derivados da mandioca mais indigesto e erosivo da camada que envolve o estômago (mucosa) que eu já conheci na minha vida. Quer saber se você tem gastrite ou úlcera? Tome um gole de tucupi e a dor é imediata.

Um conselho aos que tenham alguma doença no fígado: continuem evitando excessos na comida e não se esqueçam que não podem beber quaisquer bebidas alcoólicas. Finalizando este artigo, sugiro a todos que na passagem do ano evitem comer e beber álcool em excesso, já que não existe uma droga capaz de proteger o seu fígado contra as nossas extravagâncias. Deixe que o seu fígado cumpra normalmente sua função e tenha uma melhor qualidade de vida em 2015. Um feliz ano novo com saúde. É o que desejo do fundo do meu fígado a todos meus leitores.

       






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