Natal e Réveillon: cuidado com o seu fígado

José Carlos Ferraz da Fonseca 
Médico especialista em Doenças do Fígado (Hepatologia).






Na “Santa ceia”, Jesus Cristo ofereceu aos seus apóstolos somente “pão e vinho”. Uma ceia muito espartana, tenho que concordar. Mas, é claro, que nas festas do ano novo a maioria dos leitores não repetirá a dieta à base de pão que Jesus e os apóstolos fizeram naquele momento de significado tão religioso. O pão será somente um complemento e quem gosta do líquido santo e precioso só beberá vinho. Tive um paciente com cirrose hepática alcoólica que gostava de dizer que só gostava de beber vinho tinto. Afirmava com toda convicção que tal bebida não fazia mal porque era igual ao sangue de Cristo: encarnado (vermelho), puro e milagroso. Escrevendo como médico e não filosofando, é difícil entender certas projeções dos viciados no álcool. 

Lembro de uma das novelas de Dias Gomes (dramaturgo brasileiro), em que uma das personagens chamava-se Dona Redonda. Alguém lembra? Pois é, ela explodiu de tanto comer, não sei se foi na passagem de ano, mas que ela explodiu, explodiu. Nas consultas médicas de dezembro, é comum que os meus pacientes no final tenham sempre uma pergunta arquitetada durante o dia e na ponta da língua: “Doutor José Carlos, posso comer e beber no Réveillon?” Com certeza, eles sabem o que faz mal, pois tenho como norma clínica explicar aos meus pacientes o que é bom e o que é ruim para a sua saúde. Fico na berlinda se respondo se pode ou não, pois adoro os quitutes da passagem de ano, menos qualquer coisa que contenha álcool. Infelizmente, as palavras “pena” ou “coitadinho” não existem no dicionário da minha especialidade. A qualidade de vida dos pacientes com qualquer doença do fígado depende muito mais dos próprios pacientes do que do médico que o assiste.

O que realmente faz mal para o fígado? Muito pouca coisa, se você não tem nenhuma doença hepática ou predisposição a tê-la. Todavia, se você tiver alguma doença no fígado ou predisposição e encontra-se em fase de tratamento, quase tudo faz mal, até um doce suspiro ou um brigadeiro comido na hora errada. 

Começamos pelo excesso de bebidas alcoólicas. O dano ao fígado causado pelo álcool está estritamente relacionado à quantidade, frequência e duração do tempo de consumo de álcool.  Se o leitor deste artigo, ou alguém bem próximo, beber diariamente 60-80 gramas de álcool (duas doses de cachaça ou uma de conhaque e mais duas latas de cerveja), por mais de 5 a 12 anos, provavelmente, terá grandes possibilidades, desde que seja suscetível, de desenvolver uma cirrose hepática alcoólica. Contudo, em muitos alcoólatras, a cirrose hepática nunca ocorre, mesmo após décadas de ingestão de álcool excessiva. Pronto: se você não tem nenhuma doença hepática, beba moderadamente no Réveillon e nada acontecerá ao seu fígado. Um outro aviso: cuidado, o álcool não faz mal só para o fígado. A ingestão abusiva pode fazer com que o machão extravase em público o seu lado feminino. Há mais problemas: tanto o homem como a mulher podem sofrer de estômago (gastrite, úlcera), de perda da potência sexual (homem) e da libido (homem, mulher), do pâncreas, do coração e dos nervos. Muito acabam perdendo o juízo, ocasionando os mais graves delitos, seja no trânsito ou em sua própria casa. Os crimes passionais são na maioria das vezes ocasionados pelo consumo exagerado de álcool.

Com relação aos quitutes do Réveillon, o que realmente faria mal para uma pessoa com o fígado sabidamente sadio? Sabemos que todos os sintomas apresentados pelo paciente após tal ceia  estariam relacionados com o estômago, vesícula biliar e o intestino, e não com o fígado. Neste caso, o fígado do “rei  ou rainha da gordura e do álcool” teria que trabalhar dez vezes mais para processar e eliminar os elementos nocivos contidos na ceia do Réveillon (gorduras, toxinas químicas, sal), nos petiscos (gorduras, substâncias cancerígenas, conservantes, toxinas químicas, sal) e bebida alcoólica (etanol). Em decorrência da alta concentração de colesterol nos petiscos e ceia, o fígado usaria esta superoferta de colesterol para produzir excessivamente uma substância chamada bile ou bílis (substância amarelo-esverdeada secretada pelo fígado), que seria eliminada para o duodeno (primeira porção intestino delgado) e intestino (mistura-se com os alimentos para ajudar na digestão). Parte da bile seria absorvida pelo estômago e daí provocaria boca amarga e com gosto de água de lavar espingarda ou de fel. Quem ainda não foi personagem desta história, que atire a primeira colherada de maionese.

Se você tem pedra na vesícula, aí a história é diferente. Depois dos comes e bebes do Réveillon, lá pelo fim da madrugada começa a sessão de gases incontroláveis e inconvenientes, boca amarga, cólica, o teto roda, existe uma sensação de que a barriga vai explodir (distensão abdominal), o guloso ou gulosa chama os filhos para se despedir e diz que desta não escapa. No dia seguinte, logo pela manhã o paciente refere intolerância a alimentos e diz com toda moral possível que nunca mais vai repetir o que fez ontem. Geralmente o almoço do dia primeiro é o que sobrou da véspera. E aí? Conheço muita gente que adora pegar os restos do peru ou porco (ossos do barão) que sobrou do jantar da véspera, colocar jambu, tucupi e oferecer no almoço o novo prato: “peru ou porco no tucupi”. Jambu e tucupi são temperos amazônicos usados em nossa culinária. Existem pessoas que afirmam que é um verdadeiro manjar dos deuses, ainda não ousei provar.  O tucupi é um dos produtos derivados da mandioca mais indigesto e erosivo da camada que envolve o estômago (mucosa) que eu já conheci na minha vida. Quer saber se você tem gastrite ou úlcera? Tome um gole de tucupi e a dor é imediata.

Um conselho aos que tenham alguma doença aguda ou crônica no fígado: continuem evitando excessos na comida e não se esqueçam que não podem beber quaisquer bebidas alcoólicas. Finalizando este artigo, sugiro a todos que na passagem do ano evitem comer e beber álcool em excesso, já que não existe uma droga capaz de proteger o seu fígado contra as nossas extravagâncias. Deixe que o seu fígado cumpra normalmente sua função e tenha uma melhor qualidade de vida em 2017. Um feliz natal e um ano novo com muita saúde. É o que desejo do fundo do meu fígado a todos meus leitores.

       






Vitamina D e o fígado

José Carlos Ferraz da Fonseca
Médico especialista em doenças do fígado (Hepatologia)


Quando funciona a contento, o fígado tem a capacidade de sintetizar todas as vitaminas que o organismo recebe, seja através dos alimentos que consumimos, dos complexos vitamínicos que, algumas vezes, teimamos em ingerir em grandes quantidades ou pela exposição da pele ao sol (conversão fotoquímica para previtamina D3).

Sabemos que todas as vitaminas são necessárias ao nosso organismo para que possamos viver com saúde e sem problemas, citando, como exemplo, as vitaminas A, B, C, D, E e K. Destas, a vitamina D é muito importante, pois, em conjunto com o hormônio da paratireoide, mantém a concentração de cálcio e fosfato no organismo, favorecendo a estrutura dos ossos. Existem dois tipos de vitamina D: a vitamina D2 e D3. As principais fontes da vitamina D são: óleo de peixe, contido no salmão, sardinhas do mar e ovas de peixe; margarina; manteiga; leite; creme de leite; cogumelos; cereais, ingeridos no café da manhã. Além disso, a exposição ao sol faz com que o organismo produza vitamina D.

Nos últimos anos, diversos trabalhos científicos revelam que a deficiência da vitamina D, em pacientes com doença hepática crônica, pode contribuir para as formas mais graves e progressivas da doença, inclusive com evolução desfavorável para cirrose hepática.

 O déficit de vitamina D, associado à deficiência do cálcio no organismo, pode estar relacionado a várias doenças, e a mais importante delas é a osteodistrofia hepática, cujo conceito científico consiste em complicação tardia frequente nas doenças hepáticas crônicas, em que os pacientes, comumente, apresentam diminuição da densidade óssea,  caracterizada principalmente por osteoporose (massa óssea baixa) e fraturas ósseas espontâneas.

Estudos publicados nos Estados Unidos (ano 2010) revelam dados preocupantes relacionados à prevalência da deficiência de vitamina D em pacientes com doença hepática crônica. Nesse estudo americano, dos 109 pacientes investigados, 92,5% apresentavam vários graus de deficiência de vitamina D no sangue. Foi observado, ainda, que o grupo de pacientes portadores de cirrose hepática apresentava índices maiores de deficiência do que o observado entre pacientes não cirróticos (29,5% versus 14,15%). Outro dado relevante a ser destacado dessa pesquisa foi que, entre as mulheres afro-americanas, o índice de deficiência da vitamina D teve maior prevalência.

Entre pacientes com hepatite crônica ou cirrose hepática pelo vírus da hepatite C (VHC), os níveis do déficit de vitamina D no sangue são gritantes. Na minha experiência, de 154 casos analisados (dados não publicados), 62,7% apresentavam-se com déficit acentuado dessa vitamina, 28,4% com déficit moderado, 6,4% leve e, apenas, 2,5% com níveis normais de vitamina D. Os resultados encontrados na minha casuística não se diferenciam de outros estudos publicados. Entre pacientes de origem americana com cirrose pelo VHC, foi observado que: 30,2% tinham déficit acentuado, 48,8% déficit moderado e 16,3% apresentavam leve déficit de vitamina D.

Em pacientes com doença hepática crônica pelo VHC e que apresentam déficit de vitamina D, é observado um maior comprometimento hepático, caracterizado por alto grau de necrose (destruição do tecido hepático) e exacerbação da progressão para fibrose hepática. A vitamina D, no organismo, desempenha várias ações, mas a mais importante é a ação anti-inflamatória que exerce. A simples reposição terapêutica da vitamina D entre estes pacientes, por um período nunca inferior a seis meses, ajuda a melhorar a função hepática. Portanto recomenda-se aos pacientes portadores de qualquer doença hepática crônica (hepatite crônica autoimune, esteato-hepatite não alcoólica, cirrose hepática, cirrose biliar, colangite esclerosante e colestase crônica) a dosagem no sangue da vitamina D. Se o paciente apresentar queda dos níveis sanguíneos de vitamina D, o médico assistente deve repor esta vitamina imediatamente. A simples reposição da vitamina D, por via oral, melhora a qualidade de vida entre estes pacientes.

Estudos atuais sugerem que as células cancerígenas produzidas por determinados tumores, principalmente o carcinoma hepático, são capazes de inibir os efeitos da vitamina D em nosso organismo. Assim, a vitamina D tem sido indicada no tratamento coadjuvante dos tumores cancerígenos de origem hepática. A partir de estudos experimentais, sabe-se que a vitamina D3 é capaz de inibir a invasão de células cancerígenas em ratos. Com base nesses estudos e outros, a indicação da vitamina D como profilático de determinados tumores começa a ser investigada. Contudo os resultados ainda são bastante preliminares, então, por favor, não se automedique com qualquer tipo de remédio sem antes ouvir o seu médico, ele é a pessoa certa para medicá-lo.

Várias teorias tentam explicar o déficit de vitamina D encontrado frequentemente entre pacientes com doença hepática crônica, principalmente entre portadores de hepatopatia crônica pelo VHC. Todavia o que temos de mais concreto é que, entre pacientes cirróticos, ocorre uma redução da exposição às fontes de vitamina D (raios de sol, dieta). Outros fatores, como a má absorção da vitamina D no intestino e a redução da produção de albumina pelo fígado cirrótico, podem gerar o déficit da vitamina D.


Varizes esofágicas


José Carlos Ferraz da Fonseca

Médico especialista em doenças do Fígado (Hepatologia)



Na foto ao lado (setas verdes), observa-se cordões varicosos (varizes esofágicas) na endoscopia digestiva.
Imagem livremente obtida através da publicação de Hideaki Kodama e cols (AJR 2009; 192:122-130).






























































Pacientes portadores de cirrose hepática apresentam varias complicações relacionadas com o processo evolutivo da doença. As principais complicações seriam: barriga-d’água (ascite), hipertensão portal (complicação progressiva da cirrose hepática), sangramentos, infecções, desorientação (encefalopatia hepática) e outras mais. Das que mais preocupam os médicos, as varizes esofágicas ocupam sempre o primeiro lugar.

O que são varizes esofágicas e porque essas aparecem no cotidiano do paciente cirrótico. A cirrose, estágio final da doença hepática crônica, é a causa mais comum do aumento acentuado da pressão venosa do sistema portal, denominada como hipertensão portal. Assim, podemos conceituar hipertensão portal como: aumento da pressão entre a veia porta e a veia hepática (> 6mmHg). Portanto, se as veias do sistema porta aumentam por pressão, as veias contidas na parede do esôfago e estomago dilatam-se e podem ocasionar ruptura.

São excepcionalmente raras as complicações clinicas da cirrose hepática que não estão diretamente relacionadas com a hipertensão portal. Pacientes cirróticos em estágio inicial não apresentam durante a consulta médica, sinais e sintomas que possam sugerir o diagnostico de hipertensão portal.

A hipertensão da veia porta pode ser classificada como: pré-hepática, que caracteriza-se pelo aumento da resistência nas veias porta ou esplênica (formação de trombos, compressão tumoral); hepática (cirrose, esquistossomose, hepatite alcoólica, toxinas); pós-hepática (doenças cardíacas, trombose).

Como sabemos, a principal complicação da hipertensão portal é a ruptura das varizes esofágicas, principalmente entre pacientes com cirrose hepática descompensada (albumina baixa, infecções, barriga d’água, encefalopatia hepática, uso de drogas para disfunção erétil). Quando ocorre tal ruptura, observa-se hemorragia digestiva. O quadro de hemorragia pode ser discreto ou exacerbado. Quando discreto, ocorre o relato de fezes escuras pelo paciente. Se exacerbado, o paciente tem inicialmente enjoos (acumulo de sangue vivo no estomago) e depois vomita sangue (hematêmese), que pode ser vivo ou coagulado. Outro sinal é a presença de sangue nas fezes (melena).

A endoscopia digestiva alta é o melhor método de diagnóstico para a detectação das varizes esofágicas e gástricas. Estudos revelam que 40% dos pacientes cirróticos compensados apresentam varizes no esôfago. Entre cirróticos descompensados, o percentual é bem maior, em torno de 60%.

No exame endoscópico, o calibre das varizes revela o grau de gravidade. O exame endoscópico permite medir a pressão das varizes, tratar varizes sangrantes ou não (ligadura ou esclerose das varizes). Se o calibre é fino, não indicamos qualquer procedimento terapêutico, apenas monitoramos. Se as varizes são de médio ou grosso calibre, temos como conduta profilática indicar a devida ligadura ou esclerose por endoscopia.

No tratamento das varizes esofágicas podemos utilizar varias drogas, tentando reduzir a pressão da veia porta. Porém, só indicamos o tratamento com drogas se ocorrer sangramento prévio. É importante frisar que após o primeiro episodio de sangramento varicoso, a probabilidade de ressangramento é bastante elevada, variando e 40% a 70% dos casos. Quando ocorre ressangramento, a mortalidade é muito alta.

O que podemos concluir com este artigo? Na minha clinica diária, ao diagnosticar um paciente com cirrose hepática, independente da causa, sempre indico estudo endoscópico digestivo, método este que dá ao médico assistente bastante segurança, evitando assim surpresas desagradáveis no dia-a-dia. Se o prezado leitor é cirrótico, compensado ou não, procure trimestralmente seu médico, pois só assim você evitara complicações maiores referentes à sua doença. A hemorragia digestiva por ruptura das varizes esofágicas é a meu ver, a mais dramática situação de urgência em que um ser humano enfrenta, seja ele o paciente, familiar ou o médico que o atende.

Recomendamos aos pacientes portadores de varizes esofágicas o que se segue: procure seu médico pelo menos duas vezes por ano (paciente com varizes de esôfago geralmente exige um acompanhamento permanente); fezes escuras tipo “borra de café”, podem ser o primeiro sinal de ruptura das varizes; evite deglutir alimentos cortantes (torradas ou bolachas); alimente-se de pequenas porções e mastigue bem; evite alimentos rugosos (ervilha de grão rugoso, milho, pipoca); fuja de drogas para disfunção erétil (Viagra ou Cialis); se usar bebida alcoólica, esqueça, pois o álcool é um doce veneno para o cirrótico; tenha cuidado com o aumento brusco da pressão intra-abdominal, como um espirro, um ataque de tosse, ou um esforço ao defecar, pois pode provocar rompimento das varizes.
“O fígado é ainda um daqueles assuntos sobre os quais nós sabemos mais do que realmente é verdade”, Kurt Aterman (1963). Varizes esofágicas José Carlos Ferraz da Fonseca Médico especialista em doenças do Fígado (Hepatologia) Na foto ao lado (setas verdes) observa-se cordões varicosos (varizes esofágicas). Imagem livremente obtida através da publicação de Hideaki Kodama e cols ( AJR 2009; 192:122-130). Pacientes portadores de cirrose hepática apresentam varias complicações relacionadas com o processo evolutivo da doença. As principais complicações seriam: barriga-d’água (ascite), hipertensão portal (complicação progressiva da cirrose hepática), sangramentos, infecções, desorientação (encefalopatia hepática) e outras mais. Das que mais preocupam os médicos, as varizes esofágicas ocupam sempre o primeiro lugar. O que são varizes esofágicas e porque essas aparecem no cotidiano do paciente cirrótico. A cirrose, estágio final da doença hepática crônica, é a causa mais comum do aumento acentuado da pressão venosa do sistema portal, denominada como hipertensão portal. Assim, podemos conceituar hipertensão portal como: aumento da pressão entre a veia porta e a veia hepática (> 6mmHg). Portanto, se as veias do sistema porta aumentam por pressão, as veias contidas na parede do esôfago e estomago dilatam-se e podem ocasionar ruptura. São excepcionalmente raras as complicações clinicas da cirrose hepática que não estão diretamente relacionadas com a hipertensão portal. Pacientes cirróticos em estágio inicial não apresentam durante a consulta médica, sinais e sintomas que possam sugerir o diagnostico de hipertensão portal. A hipertensão da veia porta pode ser classificada como: pré-hepática, que caracteriza-se pelo aumento da resistência nas veias porta ou esplênica (formação de trombos, compressão tumoral); hepática (cirrose, esquistossomose, hepatite alcoólica, toxinas); pós-hepática (doenças cardíacas, trombose). Como sabemos, a principal complicação da hipertensão portal é a ruptura das varizes esofágicas, principalmente entre pacientes com cirrose hepática descompensada (albumina baixa, infecções, barriga d’água, encefalopatia hepática, uso de drogas para disfunção erétil). Quando ocorre tal ruptura, observa-se hemorragia digestiva. O quadro de hemorragia pode ser discreto ou exacerbado. Quando discreto, ocorre o relato de fezes escuras pelo paciente. Se exacerbado, o paciente tem inicialmente enjoos (acumulo de sangue vivo no estomago) e depois vomita sangue (hematêmese), que pode ser vivo ou coagulado. Outro sinal é a presença de sangue nas fezes (melena). A endoscopia digestiva alta é o melhor método de diagnóstico para a detectação das varizes esofágicas e gástricas. Estudos revelam que 40% dos pacientes cirróticos compensados apresentam varizes no esôfago. Entre cirróticos descompensados, o percentual é bem maior, em torno de 60%. No exame endoscópico, o calibre das varizes revela o grau de gravidade. O exame endoscópico permite medir a pressão das varizes, tratar varizes sangrantes ou não (ligadura ou esclerose das varizes). Se o calibre é fino, não indicamos qualquer procedimento terapêutico, apenas monitoramos. Se as varizes são de médio ou grosso calibre, temos como conduta profilática indicar a devida ligadura ou esclerose por endoscopia. No tratamento das varizes esofágicas podemos utilizar varias drogas, tentando reduzir a pressão da veia porta. Porém, só indicamos o tratamento com drogas se ocorrer sangramento prévio. É importante frisar que após o primeiro episodio de sangramento varicoso, a probabilidade de ressangramento é bastante elevada, variando e 40% a 70% dos casos. Quando ocorre ressangramento, a mortalidade é muito alta. O que podemos concluir com este artigo? Na minha clinica diária, ao diagnosticar um paciente com cirrose hepática, independente da causa, sempre indico estudo endoscópico digestivo, método este que dá ao médico assistente bastante segurança, evitando assim surpresas desagradáveis no dia-a-dia. Se o prezado leitor é cirrótico, compensado ou não, procure trimestralmente seu médico, pois só assim você evitara complicações maiores referentes à sua doença. A hemorragia digestiva por ruptura das varizes esofágicas é a meu ver, a mais dramática situação de urgência em que um ser humano enfrenta, seja ele o paciente, familiar ou o médico que o atende. Recomendamos aos pacientes portadores de varizes esofágicas o que se segue: procure seu médico pelo menos duas vezes por ano (paciente com varizes de esôfago geralmente exige um acompanhamento permanente); fezes escuras tipo “borra de café”, podem ser o primeiro sinal de ruptura das varizes; evite deglutir alimentos cortantes (torradas ou bolachas); alimente-se de pequenas porções e mastigue bem; evite alimentos rugosos (ervilha de grão rugoso, milho, pipoca); fuja de drogas para disfunção erétil (Viagra ou Cialis); se usar bebida alcoólica, esqueça, pois o álcool é um doce veneno para o cirrótico; tenha cuidado com o aumento brusco da pressão intra-abdominal, como um espirro, um ataque de tosse, ou um esforço ao defecar, pois pode provocar rompimento das varizes.
Cirrose hepática e suas manifestações clínicas
José Carlos Ferraz da Fonseca


Médico especiali
sta em Doenças do Fígado (Hepatologia)



Paciente (sexo masculino) apresentando sinais
clássicos de cirrose hepática (barriga d'água, mama de mulher, aranhas vasculares)





O que nós podemos dizer ao leitor deste blog sobre as manifestações clínicas da cirrose hepática? Primeiro, seria interessante informar que o fígado na maioria das vezes sofre calado, mesmo cirrótico, apesar de todo o mal que nós temos o prazer ou o vício de fazê-lo trabalhar como nunca.

Clinicamente, os pacientes cirróticos podem apresentar duas fases de doença. A primeira fase da doença é caracterizada pela ausência de qualquer sintoma ou sinal de comprometimento do fígado e pode estender-se por vários anos e até décadas. O paciente cirrótico (estado de cirrose) nesta fase tem uma vida normal, aparentemente é saudável e raramente diagnostica-se esta fase de doença. Como na medicina não existe “nem nunca e nem sempre”, esta fase de doença, mesmo sem qualquer sinal ou sintoma, pode revelar através de uma simples ultra-sonografia abdominal um fígado reduzido de tamanho, que já seria um sinal sugestivo de cirrose hepática. Um fígado diminuído de volume observado na ultra-sonografia não é um diagnóstico concreto de cirrose hepática, pois, à medida que envelhecemos, o tamanho e o peso do fígado diminuem. Aos 60 anos de idade, o fígado reduz-se à metade do tamanho de quando tínhamos menos que 40 anos de idade.

Se você tem menos que 60 anos de idade, é portador dos vírus das hepatites B ou C, tem gordura no fígado com transaminases alteradas, faz uso abusivo das bebidas alcoólicas por mais de 5 a 10 anos, uso drogas que podem lesar o fígado, é diabético, obeso e tem plaquetas baixas observadas em exames hematológicos rotineiros, sugiro que procure seu médico assistente, já que alguma coisa pode estar acontecendo com o seu fígado.

A segunda fase da doença se caracteriza pelo aparecimento dos primeiros sinais claros de doença hepática crônica (cirrose hepática). Inicialmente, alguns pacientes adultos queixam-se de pequenos sangramentos gengivais ao escovar os dentes (gengivorragia), sangramentos espontâneos pelo nariz (epistaxe), manchas na região do tórax semelhantes a aranhas (aranhas vasculares) ou manchas violáceas na pele provocada por pequenos traumatismos ou ocasionadas pelo simples ato de coçar (equimoses). Nas mulheres, o ciclo menstrual altera-se e grande parte deixa de menstruar. Nos homens a clínica inicial da cirrose é mais exuberante e uma significativa partes dos pacientes começam apresentar sinais de feminização caracterizado por: modificação na distribuição dos pelos (ausência de pelos na região suprapúbica) e do tecido gorduroso (acúmulo na cintura e coxas); atrofia dos testículos; crescimento dos peitos (ginecomastia). Nesta fase de doença, a perda da libido e o aparecimento da impotência sexual (disfunção erétil) podem ser um dos primeiros sinais de cirrose hepática. Pacientes cirróticos com a presença de varizes esofágicas devem abster-se do uso de drogas contra a disfunção erétil, pois correm o risco de hemorragia digestiva.  Tais alterações não são uma regra em pacientes cirróticos e pode ser considerada uma exceção.

Um significativo número de pacientes inicia o quadro de cirrose hepática com uma ou com várias complicações que a doença ocasiona, tais como: hemorragia digestiva por ruptura de varizes esofágicas, aumento do volume abdominal em decorrência do acúmulo de líquidos (ascite), olhos amarelos (icterícia), edema dos membros inferiores, sonolência diurna ou desorientação no tempo e no espaço (encefalopatia), infecções repetidas, etc.

Outros sinais que os pacientes com cirrose hepática apresentam, seriam: um hálito insuportável que lembra o cheiro de maçã podre (fedor hepático) e, ao estender a mão, o paciente começa a apresentar tremores que parecem “bater de asas”. Crises de convulsão são frequentemente observadas entre esses pacientes que, se não tratados rapidamente, tendem a entrar em coma e a morte é inevitável. Com o aparecimento de tais complicações nesta fase avançada da doença, o quadro de cirrose é irreversível e a única solução é o transplante hepático.

O fígado doente e o estado de confusão mental (encefalopatia hepática)

José Carlos Ferraz da Fonseca


Médico especialista em doenças do fígado (Hepatologia)


Quando o fígado de um paciente é atingido por uma doença aguda grave (insuficiência hepática fulminante) ou crônica (cirrose hepática), observa-se alta concentração de amônia sanguínea. Como tal fato ocorre? Normalmente, a amônia é produzida no intestino pela atividade bacteriana, transportada para o fígado através da veia porta, metabolizada nesse órgão e transformada (quebrada) em ureia. Por outro lado, na presença de insuficiência hepática ou de extensa circulação colateral (o sangue passa por fora do fígado), como a que se desenvolve na cirrose hepática, a amônia se acumula no sangue em quantidades crescentes e impregna o cérebro. Quando o fígado doente se torna incapaz de eliminar a amônia, o acúmulo dessa substância no cérebro pode causar transtornos neurológicos e psíquicos, inclusive o estado de coma ou morte.

Pacientes com fígado sadio que desenvolvem insuficiência hepática aguda ou fulminante podem apresentar quadro de encefalopatia hepática aguda. As principais causas são hepatites virais (vírus da hepatite A, B, C, D e E), febre amarela, drogas empregadas no tratamento da tuberculose, uso prolongado de anti-inflamatórios, superdosagem (mais de 10 gramas) de paracetamol (tylenol), fígado gorduroso na gravidez e infecções graves.

O estado de encefalopatia hepática crônica ou confusão mental em pacientes cirróticos pode ser desencadeado por vários fatores e os mais importantes são:

a) ingestão de carne vermelha e outras proteínas animais(leite, ovos, queijos)[1];
b) hemorragia gastrointestinal (ruptura das varizes esofágicas)[2];
c) uso de álcool;
d) infecções (urinárias, intestinais, respiratórias, do líquido ascítico);
e) uso de sedativos (diazepínicos e seus derivados);
f) uso de diuréticos (furosemida, espirolactona);
f) prisão de ventre (obstipação intestinal)[3];
g) retirada de grande quantidade de líquido ascítico da cavidade abdominal;
h) gastrites e úlceras duodenais provocadas pelo Helicobacter pylori [4] .


Sabe-se que 70% dos pacientes com cirrose hepática desenvolvem estado de confusão mental (encefalopatia hepática crônica). As funções intelectuais, de personalidade e de consciência e as funções neuromusculares sofrem alterações e limitações.

Diversos estágios da doença são observados, desde o de latência até o coma profundo. Existem vários critérios para a classificação da encefalopatia hepática. O critério de mais fácil compreensão para o leitor leigo no assunto é o de West Haven (modificado por Harold Conn em 1994).

Grau 0 (encefalopatia latente): não são observados transtornos, todavia, o médico assistente pode detectar essa fase latente durante exame psicrométrico (prova de escritura, sequência de números, seguimento de linhas, números e símbolos).

Grau 1: perturbação discreta da consciência, euforia ou ansiedade, discreto flapping ou asterixis (ao estender as mãos, o paciente apresenta tremores e as mãos parecem “bater asas”), diminuição da capacidade de atenção, redução da capacidade de cálculo. Alguns pacientes nesse estágio de encefalopatia são diagnosticados erroneamente como portadores de arteriosclerose ou doença de Alzheimer.

Grau 2: letargia ou apatia (o paciente tem baixa atividade), desorientação espacial (não sabe onde se encontra), presença de flapping ou asterixis, mudança de personalidade, comportamento inadequado, diminuição da capacidade de cálculo matemático. Há casos em que pacientes internados em clínicas psiquiátricas, apresentando o referido quadro, são tratados como portadores de doenças de origem, essencialmente, psiquiátrica e não hepática.

Grau 3: sonolência diurna e insônia noturna, confusão mental, agressividade, flapping evidente e constante, desorientação no tempo e no espaço.

Atendido em março de 2009, o caso de um paciente diagnosticado como portador do grau 3 de encefalopatia hepática ilustra o assunto. Sua esposa vinha notando um comportamento estranho do marido (59 anos, portador de cirrose hepática alcoólica). Na consulta, informou que, dois dias antes, o paciente havia urinado dentro do guarda-roupa; comido, no café-da-manhã, pequenas esferas de isopor com leite (jurando ser farinha de tapioca); vestido a calcinha vermelha da esposa; passado batom; calçando a sandália plataforma da esposa e dito que iria assistir a um show do cantor Nelson Gonçalves (falecido em 18 de abril de 1998). Para completar o quadro, o paciente ainda havia perguntado à esposa quem era ela e qual o seu nome (eram casados há mais de 30 anos). No dia da consulta, o paciente teimou em me chamar de Dr. Sócrates, jogador de futebol do passado e responsável pela “democracia corintiana”.

No fim da década de setenta, escapei por pouco de morrer nas mãos de um paciente com encefalopatia. Durante o exame de um garimpeiro no leito hospitalar, ele começou a ficar agressivo e, de repente, tirou um canivete automático do bolso e disse que iria me matar. Gritando e com os olhos esbugalhados, afirmou que eu era o mensageiro do demo e queria roubar suas pepitas de ouro. Fui salvo por outro paciente, que conseguiu tirar a arma do garimpeiro. O paciente foi medicado e melhorou do estado de agressividade. Porém, dois dias depois, faleceu por hemorragia digestiva incontrolável. Um dos seus filhos me procurou logo após o óbito e me entregou o canivete, dizendo-me: “antes de morrer, meu pai me pediu que entregasse o canivete ao senhor. Por favor, pegue, é seu”. Quis recusá-lo, mas o prezado leitor sabe muito bem que presentes dados por mortos não devem ser rejeitados. Agradeci e peguei o canivete, o qual repousa há mais de 35 anos no fundo de uma das gavetas da minha biblioteca. De vez em quando, olho meio desconfiado para a arma branca e penso com os meus botões: “meu Deus, escapei por pouco, obrigado por indeferir minha passagem precoce para o outro mundo”.

Grau 4: estado de coma (nenhuma reação a estímulos verbais ou dolorosos), ausência de flapping, hálito hepático (lembra o cheiro de maçã podre).

Na maioria dos casos, o quadro de encefalopatia hepática é reversível com o tratamento. A identificação e a supressão do provável agente desencadeante do quadro devem ser a primeira medida a ser explorada, bem como deve ser interrogada a família do paciente.

Para cirróticos ou familiares de pacientes com o referido problema, é muito simples controlar e prevenir o estado de confusão mental, basta seguir dois conselhos básicos. Sentado ou em pé, o paciente cirrótico deve colocar seus braços em posição reta (na linha do coração). Deve aguardar alguns segundos e, se suas mãos levantadas apresentarem movimentos semelhantes ao “bater de asas”, provavelmente, o paciente está em processo de encefalopatia hepática. O segundo conselho é que o paciente cirrótico seja questionado pela família, todos os dias e várias vezes ao dia, sobre questões comuns, por exemplo, qual é o seu nome? Em que ano você nasceu? Como é o nome do bicho de estimação da casa? Qual a marca do seu carro?,Qual é o seu time de futebol? Se houver lentidão nas respostas ou afirmações como “não sei ou não me lembro”, se disser que é “flamenguista” e a família sabe que o distinto é, desde criancinha, “vascaíno de carteirinha”, deve-se ligar imediatamente para o médico assistente, pois o paciente necessita de cuidados médicos.

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[1]A ingestão exagerada de proteínas, principalmente de carne vermelha, produz excesso de substâncias aminadas, que são uma grande fonte para a produção de amônia.
[2] O sangue retido nos intestinos (cólons) incrementa a produção de substâncias nitrogenadas (amônia), que não são adequadamente clareadas, metabolizadas ou inativadas pelo fígado.
[3] A retenção prolongada das fezes no intestino favorece a proliferação bacteriana produtora de material nitrogenado (amônia e outros produtos tóxicos). Assim, o paciente cirrótico deve defecar, pelo menos, duas vezes ao dia.

[4] O helicobacter pylori é um potente produtor da enzima uréase. Essa enzima catalisa a hidrólise (reação química de quebra de uma molécula pela água) da ureia em dióxido de carbono e amônia.